segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Resenha: Candy, de Luke Davies



Alguns livros nos tocam de maneira real e dolorida. Outros são como passar por uma cidade, de carro, e não parar para ver nada de perto. Alguns livros são tão viscerais que você o vivencia como se tivesse entrado numa cidade, bairro ou casa e tocasse cada elemento presente ali: sentisse seu cheiro e textura. Candy é um deles.

Este é um livro sobre amor e vício, e como essas duas coisas se aproximam. Dan (na verdade, o nome do narrador não é dito, o que nos remete ao passado do autor Luke Davies, que também passou anos dentro do vício em heroína. Peguei emprestado o nome que a adaptação cinematográfica dá ao protagonista) conhece Candy e se apaixona rápido: é uma história bem clássica. Um viciado em heroína e uma garota muito linda que breve também iria injetar a droga em suas veias. Livros e filmes sobre drogas costumam seguir um padrão triste envolvendo abstinência, risco de vida e prostituição. Candy não é diferente disso, mas perpassa muito do universo que existe dentro das pessoas, e é isso que torna esta história tão especial.

Depois de morarem juntos, Dan e Candy têm uma história de amor baseada em heroína: acordar, usar, conseguir dinheiro para a próxima dose antes de começarem as horríveis dores e o suór pegajoso da abstinência. O dinheiro dos pais de Candy não é suficiente para manter uma casa e o vício de duas pessoas. Logo ela começa a se prostituir e Dan continua com os ocasionais golpes e roubos de carteira. O problema é que quanto mais dinheiro se tem, mais dinheiro se gasta em drogas, e consequentemente mais eles usam. O casal não conseguia ter muitos bens em casa por algum tempo. Todos os itens eram vendidos por heroína. A base do relacionamento eram as horas cheias do calor que a droga proporciona, planos de viagens, ambos limpos, sem aquela substância entupindo suas veias, um bebê, uma família e casa de verdade.

Este é um livro dividido em capítulos sobre decadência lenta que o destino reserva aos dois. Como o próprio Dan, como narrador descreve, haviam os bons momentos e os momentos ruins. Os bons momentos eram o sexo, as cores do mundo muitos vivas e douradas, banhadas em heroína e cigarros. Os ruins eram a abstinência, as brigas, Candy se prostituindo. Doença, dor, fracasso. Como também diz Dan, heroína atrai problemas.

Muitos dos eventos narrados por Dan me surpreenderam: eu já esperava, ao começar um livro sobre vício em heroína, que leria sobre tentativas fracassadas de abandonar a droga, prostituição e tristeza. Não imaginava ler que Dan não conseguiria mais encontrar veias nos braços, mãos, pernas ou pés. Ou que Candy se aproveitaria das tendências suicidas de um homem aleatório para extorquir dinheiro dele. Ou que masturbação ajudaria a aliviar os sintomas de abstinência. Nós sempre imaginamos pior do que realmente é, e ainda assim, esta é uma história que me chocou.

Durante a leitura, eu me sentia submersa. Era como se eu estivesse dentro de Dan, experimentando o mundo sob a visão de alguém que não está realmente em contato com ele. O mundo deste casal não é o nosso, é o deles. Candy e Dan contra o mundo, numa redoma de vidro, dentro de uma seringa. 

Ainda assim, cada um deles vivencia o vício de maneira diferente. Candy muitas vezes pergunta a Dan se ele não vê o que aquela vida estava fazendo com ela e minha impressão foi de que ele nunca entendeu. Mais para o final da história, percebemos que Dan não conseque vivenciar o mundo, ou os outros, inclusive Candy, sob a heroína. O vício, para ele, era desligar o mundo como ele realmente é.

É uma leitura poética e que não se arrasta em momento algum. Os personagens são jovens e divertidos, e as situações, quando não são terrivelmente trágicas, são até engraçadas (destaque especial para o capítulo em que Candy e Dan ficam infestados de piolhos). Alguns capítulos, apresentados em itálico são absolutamente introspectivos e pouco narrativos da vida do casal. Estes foram os meus preferidos, porque traziam uma verdade difícil sobre quem Dan era sob efeito da heroína e como as coisas doíam de maneira bonita.

Eventualmente eles começam o tratamento com methadone, uma substância que retira os efeitos da abstinência e facilita o fim do vício. Ambos começam a perceber como estavam tristes, como tudo era vazio, como o amor talvez não fosse suficiente. Como falei, a heroína os deixava submersos: emergir do vício significava emergir para o ser que eles realmente eram e isso era cutucar a seringa. As conversas entre os dois começaram a revelar muita dor e ressentimento. Fazer planos não era mais um combustível para esperança: com heroína, tudo parecia possível. Sem a droga, viajar, ter filhos, uma casa e felicidade pareciam distantes demais.

O livro termina com um um prólogo que na verdade é um flashback para a primeira vez que Candy injetou heroína, e então entendemos como os dois se uniram. É o tipo de coisa que você deve ler para entender e sentir, então não vou contar.

Assisti o filme de 2006 antes de ler o livro e me arrependo. Sinto que ambas as experiências teriam sido mais intensas para mim se tivesse tido contato com o livro antes, mesmo que o longa tenha tido participação do autor. É uma ótima adaptação, mas não vai tão fundo nos personagens como a escrita vai: acho que neste caso, nem toda a poesia desta história pôde ser passada para a sétima arte.

Dan é interpretado por Heath Ledger e Candy por Abbie Cornish, ótimas escolhas. Luke Davies escreveu também para o filme e a direção é de Neil Armfield. O resultado é incrível e recomendo o filme para qualquer um que aguente dor.

“I am so far removed, from everything, that I can’t even cry. There’s a chasm between me, where I am, and the world I am in. The world I move my feet through. The atmosphere I breathe is like golden syrup, twenty-seven atmospheres thick. I’m wading through the world, consumed with … consumed. And I’m wading through the swamp that my body has become.”

“Eu estou tão distante, de tudo, que eu não consigo nem chorar. Existe um abismo entre eu, onde estou, e o mundo onde estou. O mundo pelo qual movo meus pés. A atmosfera que respiro é como seiva dourada, vinte e sete atmosferas de espessura. Eu estou vagando pelo mundo, cosumido por... consumido. E eu estou vagando pelo pântano que meu corpo se tornou.”


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