segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Transtornos alimentares são uma questão feminista



Enquanto feminista, falar sobre o corpo das mulheres vai ser sempre um terreno mais perigoso do que parece. Quando clamamos pela liberdade sobre o próprio corpo, muitas de nós vão querer lutar pela liberdade de fazer cirurgias plásticas, dietas e toda sorte de modificações. Às vezes, falar sobre a cultura da magreza acaba por soar como "apologia à obesidade" (não que eu acredite nisso), ou mesmo como uma tentativa de podar as mulheres que buscam se encaixar no padrão. A conversa, na realidade, não é sobre isso. É sobre uma sociedade nojenta e doentia que manipula mulheres através da aparência.

Muito se fala sobre a liberdade sobre o próprio corpo, mas vejo um silêncio doloroso e incômodo sobre muitas de nós que estão presas em si mesmas ao sofrerem com transtornos alimentares. Minha tentativa é de dizer que TAs são assuntos feministas. Ou deveriam ser: muitas militantes não sabem muito sobre o assunto porque, na verdade, quase ninguém sabe. Nós vemos filmes, lemos livros e no fim das contas não entendemos muito sobre o que é ser uma mulher anoréxica ou bulímica.

Descobri, na minha recuperação, que ser uma mulher bulímica era muitas vezes o mesmo que ser apenas mulher. Meus comportamentos eram apenas uma amplificação de diversas atitudes consideradas comuns e até mesmo femininas, assim como as maiores bizarrices alimentícias passavam despercebidas socialmente. Eis um dos motivos pelos quais quase nunca se pega uma anoréxica ou bulímica em flagrante. As conversas sobre peso, corpo, a contagem de calorias, a incerteza ao olhar o cardápio, preferir ficar em casa do que comer uma pizza com os amigos... são todas atitudes enraizadas culturalmente não só como naturais, mas femininas. Coisa de mulher.

Recentemente tive o prazer sádico de ler Wasted, um memoir da jornalista Marya Hornbacher de seus 15 anos lidando com anorexia e bulimia. Um livro que, como todos do gênero, foi manual para muitas garotas com TAs, mas que traz uma luz feminista para a relação da autora com comida.

“Havia inúmeros métodos de autodestruição disponíveis para mim (...). Eu escolhi um transtorno alimentar. Não consigo deixar de pensar que, caso eu vivesse em uma cultura em que a ‘magreza’ não fosse vista como um estranho estado de graça, eu poderia ter buscado outras maneiras de alcançar essa graça, talvez uma maneira que não tivesse danificado o meu corpo tão gravemente e distorcido tão radicalmente o meu senso de quem eu sou" Marya Hornbacher, em Wasted

Marya aborda todas as questões que engatilharam seu transtorno: perfeccionismo intenso, uma família complicada, uma cultura obcecada pela magreza feminina. Fatores que quando se encontram podem formar uma combinação perigosa. Marya chegou a pesar 52 lbs, algo como 24kg. Nesse ponto, sua doença já era literalmente visível em seu corpo emaciado, mas o caminho até lá foi de 15 anos de sofrimento. 15 anos de uma dieta completamente desbalanceada. Mesmo hoje, Marya pode morrer durante o sono porque seu corpo nunca se recuperou do abuso. Muitas de nós, mulheres com TA, vamos viver com essas doenças para o resto das vidas sem que absolutamente ninguém perceba.

Marya Hornbacher hoje em dia. Saudável.

Isso acontece, e afirmo veementemente, porque nossos comportamentos foram naturalizados. A habilidade de dizer não a comida e negar as vontades mais primitivas de sobrevivência do corpo tornou-se símbolo de poder, como se as mulheres estivessem finalmente conquistando o controle final sobre si mesmas: longe da histeria, do descontrole, da compulsão. Negando qualquer signo tido como feminino, desde a curva de coxas e quadris e seios até o dito chocolate tão amado pelas mulheres em TPM. Passar fome tornou-se o novo feminino: mulheres devem comer pouco, ocupar o mínimo de espaço possível, parecerem frágeis, dizer estar cheias quando nem 10% do seu prato foi comido.

Me lembro de estar numa mesa de bar com meu ex namorado, há alguns anos. Naquela época, eu sequer encostava em refrigerante que contivesse calorias. A coca normal dele chegou, e depois a minha zero, junto com um amigo que, em tom de brincadeira, disse: "A coca zero é dela, né?". Espera-se que mulheres estejam de dieta e, se um homem o faz, é até vergonhoso. O óbvio para nós é a restrição, o zero.

Mulheres hoje em dia vivem para o domingo em que podem comer sobremesa, enquanto os homens de meia idade engordam segurando garrafas de uísque e comendo carnes gordurosas, entupindo as artérias com o prazer que não é feminino. O prazer da mulher é o pilates, a corrida, a academia três vezes na semana. Me sinto deslocada por ser uma das poucas mulheres que conheço que não malham. E uma das poucas que ousa desejar comida. Ainda assim, tenho medo de dizer que estou com fome.

Poucas mulheres têm coragem de dizer em alto e bom som: Estou morrendo de fome! As vezes que ouço um homem dizer isso são incontáveis. Eles merecem aquelas calorias, per se. As mulheres buscam desculpas desesperadamente: não comi nada o dia todo, almocei apenas uma salada, não como doces há meses, vou queimar isso tudo na esteira hoje a noite. As mulheres pedem desculpas por comer.


Sempre bom lembrar que comida é combustível para o funcionamento do corpo. Claro que não se trata somente de sobrevivência: sobreviver com TAs é possível e temos feito isso por anos. O problema, na realidade, é viver de fato: é possível andar por aí e funcionar com pouquíssima comida, mas a dor e a pressão psicológica, a sensação de não-merecimento e de falha constante... são questões desconhecidas por homens, no geral. Quantos homens precisam pensar se merecem ou não um hambúrguer?

Nós mulheres fomos adestradas, socialmente, a vermos comida como o inimigo: enquanto nossos irmãos se inspiravam nas carreiras profissionais dos pais e queriam ser advogados, executivos, bombeiros, nós mulheres nos olhávamos no espelho pensando se não estamos um pouco gordinhas (já que a mamãe parece temer tanto isso, só pode ser algo realmente muito ruim). A pior coisa que uma mulher pode ser, é gorda. A gordura passou a ser o oposto do feminino, e qualquer coisa que a aproxime disso (como comida!) será vista como inimiga. Ser mulher é estar de dieta, contando calorias e se punindo por desejar.



Marya Hornbacher faz o paralelo em seu livro que a restrição ao desejo sexual da mulher foi substituída pela restrição ao desejo por comida. O prazer em fazer sexo deixou de ser o centro de backlash: o negócio agora é comida. Ambos os assuntos, obviamente, dizem respeito ao prazer e ao corpo. Quando controlar as mulheres através do prazer sexual não foi mais tão eficaz, sua alimentação e auto-imagem tornaram-se ótimas ferramentas de controle.

O backlash contra o feminismo engoliu o movimento: os anos 80 eram obcecados por aparência, malhação e magreza. Essa década destruiu as mulheres, e elas agora são mães e ensinam às suas filhas que elas podem até não casar virgens, mas ser gorda já é demais.

Uma vez conheci uma garota anoréxica que desenvolveu a doença depois de ter sido abusada sexualmente por um parente. Descobri, com o relato dela, que isso é muito comum: muitas vítimas associam o ganho de peso à vulnerabilidade porque seu corpo ganha curvas e se afasta do dito masculino, aproximando-se do feminino que é visto como voluptuoso. Logo, desejável, vulnerável, chamativo, errado. Muitas vítimas também utilizam o controle da alimentação como a válvula de escape para o controle que perderam sobre o corpo durante o abuso ou estupro. Claramente, a alimentação feminina e o domínio sexual de homens estão ligados. (Também acredito que muito tem a ver com os padrões de beleza infantilizadores atuais, em que a magreza da anoréxica é uma regressão ao corpo pré-púbere. Mas isso é material para outro texto.)

Concluindo que transtornos alimentares se tornaram não só naturalizados como desejáveis na sociedade contemporânea, bem como a relação entre sexo e comida para muitas, é preciso, agora, discutir o posicionamento feminista sobre isso. A questão não é simples: transtornos alimentares são vícios estimulados indiretamente pela mídia e sociedade e a grande maioria das vítimas não quer abandonar os comportamentos auto-destrutivos.

Como o feminismo pode ajudar essas mulheres é algo a ser pensado, já que tão pouca atenção foi direcionada a isso no Brasil. O feminismo e o movimento body-positive salvaram minha vida, literalmente. Eu poderia ter morrido, mas aprendi a gostar do meu corpo o suficiente para parar antes de me matar. Por agora, sobrevivo. No entanto, o que nós militantes buscamos vai além da sobrevivência: é dignidade e qualidade de vida. Liberdade, enfim. Poder comer aquele pedaço de bolo de fato sem culpa, encontrar prazer nas atividades humanas, que não deveriam ser reservadas a um só sexo.

Assim, a problematização feminista deve sim perpassar o individual e atingir o cerne das questão: nossas meninas estão sendo ensinadas a serem anoréxicas ou bulímicas. 

3 comentários:

  1. o blog todo é simplesmente incrível. Parabéns.
    <3

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  2. Antes n dava muito importancia para essas "coisas" como estupro, disturbio alimentar, entre outros.Achava que essas coisas eram ou provocadas ou de pessoas fracas, mas hoje vejo que isso é o que querem que pensamos, que culpemos ou quem faz ou a nós mesmo. É tao depressivo pensar que tantas mulheres sofrem algum tipo de abuso e que a midia faz com que pensamos que a culpa seja nossa, que devemos agir e ser mulheres lindas, magras e completamente alienadas. Odeio pensar que vivo em um mundo onde ser mulher pode passar a ideia de fraqueza, de ingenuidade e de ser apenas um objeto. Merecemos mais, rogamos pela nossa liberdade, a igualdade é o nosso maior desejo.

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  3. Oie, Carol, tudo bem? Seu texto tocou em um ponto que tenho pensado desde o ano passado, ano que fiquei na corda bamba se deveria engatar um projeto para falar sobre transtornos alimentares, body-positive, dentre outras pautas que me faltaram na adolescência, período em que a bulimia se tornou parte da minha vida. Meu ingresso, por assim dizer, no feminismo também é recente e foi na hora certa. Porém, ficou aquela agonia de saber o que mais posso fazer e concordei com vários pontos do seu texto. A mídia brasileira não dá a atenção que deveria para os TA e, quando dá, romantiza e usa de estereótipos e clichês que não condizem em nada com a realidade. Acredito sim que o feminismo deveria abordar mais esse assunto porque justamente está atrelado ao desejo de todas serem donas do próprio corpo.

    Mesmo que esteja bem, são capítulos da vida que não se apagam. E as mulheres deveriam conversar mais sobre isso, independente de terem passado por isso ou não.

    Paro por aqui ou isso vira textão hahahaha

    Beijoss e sucesso com o blog!

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